Reportagem


A flor e a náusea

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Carlos Drummond de Andrade)

Transformar a cidade num espaço sustentável, onde se possa exercer plenamente a cidadania, tem sido cada dia mais a tarefa dos próprios habitantes, que reivindicam seu direito à cidade substituindo o papel que, aprendemos, era do poder público. Nesta série de reportagens que iniciaremos agora, vamos falar um pouco sobre os atores nesse cenário que desponta na capital paulistana, do efeito de suas ações para a comunidade e em suas próprias vidas e sobre como a administração municipal vê essas iniciativas. Acompanhe…

Ocupe e Abrace: A Experiência da Praça da Nascente

Nesse verão que parece nunca terminar em São Paulo é quase redundante dizer que era uma manhã de sol quente. A diferença é que naquele sábado ensolarado, dia 9 de abril, eu estava numa praça da cidade pela qual nunca tinha passado. Quer dizer, já devo ter passado inúmeras vezes sem ter percebido que se tratava de uma praça. Fica exatamente na esquina da Av. Pompeia com a rua André Casado, na Pompeia. Cerca de três anos atrás, a praça estava abandonada e suja e, se alguém a enxergasse, certamente tentaria desviar o olhar. Isso mudou. O espaço foi reabilitado pelo coletivo Ocupe e Abrace, que no processo acabou descobrindo por lá várias nascentes do rio Água Preta, que resultou num laguinho. Agora, o pequeno lago abriga plantas aquáticas, muitos peixinhos vermelhos e vez por outra a algazarra da criançada. A praça, oficialmente Homero Silva, foi rebatizada, naturalmente, Praça da Nascente. Além da água das nascentes, o sucesso do projeto fez brotar a esperança em outros grupos, envolvidos ou não com a praça, de que era possível fazer intervenções positivas na cidade.20160409_115646

Enquanto eu mal tinha forças para esbravejar contra o calor, depois de ter percorrido cerca de dois quilômetros de caminhada em meio às nada modestas montanhas e vales de Perdizes e Sumarezinho, um pequeno grupo trabalhava com atenção e cuidado, limpando o laguinho e a área ao redor dele. Seria supostamente um mutirão, mas o número de pessoas efetivamente trabalhando era pequeno. Alguns, como eu, circulavam em torno, conversavam, apoiavam. O convite do facebook dava conta de que mais de 50 pessoas iriam, mas havia menos da metade disso e provavelmente uns seis ou sete ‘sujando as mãos’ de fato. Nem por isso reclamavam. Bem ao contrário, uma das que pareciam bem envolvidas com a atividade veio logo receber a mim e à minha amiga Célia e nos falar um pouco do trabalho do Ocupe e Abrace, do qual faz parte. Ela, Andrea Valencio Pesek, nos contou que no fim de semana anterior um grupo havia ‘vandalizado’ o laguinho e o entorno. Aparente e infelizmente, a ocorrência não foi a primeira. Mas ela garantiu que quantas vezes atacarem o parque quantas vezes eles do coletivo e apoiadores estarão de volta para protegê-lo.

Há muita sombra na pracinha e, como o terreno tem vários níveis, em alguns lugares a gente até esquece que está cercada de prédios e asfalto. As árvores, claro, amenizam o calor. O coletivo Ocupe e Abrace foi fundado para recuperar a praça em 2013 e naquele mesmo ano teve seu trabalho destacado em uma ótima entrevista na Labverde n.7, revista da FAU/USP. Você pode ler toda a entrevista aqui (págs 219 a 223) e aprender mais sobre como o coletivo foi fundado. Naquela entrevista, conduzida José Otávio Lotufo, a pessoa (não identificada) que falou em nome do grupo dizia acreditar que que estes movimentos estão simplesmente provocando a ação, a saída da inércia e da negatividade. “Porque (sic) nada de novo acontece? Porque (sic) ninguém “acredita”? Porque (sic) ninguém sabe por onde começar? Pois é isso: ninguém sabe bem por onde começar, então, comecemos, porque tudo precisa ser transformado”. Três anos depois, pergunto à Andrea o que se transformou, além da visível melhora da praça.

placa

“Nesses três anos transformações aconteceram numa intensidade incrível”, ela ressalta. “Aprendemos muito. Eu me vejo hoje tão transformada que nem lembro mais quem eu era antes da Praça da Nascente. Hoje somos um fluxo. Entramos numa sintonia potente com a natureza. Criamos a cidade que queremos, de trilhas sinuosas, canteiros abundantes, de comida e remédio, libertamos o fluxo das águas e honramos as nascentes, as árvores, os rios, e todas as criaturas”. Para Andrea, há uma conexão simbólica entre as ações do grupo e o fato de terem recuperado as nascentes: “A Praça da Nascente era um lugar de medo, as energias estavam todas paradas nesse medo. Quando libertamos o fluxo das águas tudo fluiu – o convívio, a criatividade, o amor, a confiança”.

Segundo conta Andrea, o coletivo é frequentemente convidado a dar palestras em escolas e a falar da experiência a outros grupos interessados em realizar suas próprias iniciativas. Naquele mesmo dia do mutirão, havia gente do Rios e Ruas, do Cidades Comestíveis, da Horta das Corujas e de um grupo da Casa Verde*. O que se percebe é que embora os grupos tenham ações locais, eles estão de alguma forma interligados e prontos a se ajudarem. “As pessoas são capazes de criar egrégoras de proteção e regeneração quando se reúnem em respeito, em paz, sem competição e sim colaboração. Tudo muda”, acredita Andrea.

12963756_10208977645428623_7968865730933212600_n

Em tempos de agressividade gratuita, on line e ao vivo, a postura zen de Andrea parece destoar. Mesmo assim, ela parece consciente dos desafios. “Há muito aprendizado pela frente, eu acho que este tempo é um de pequenas e potentes revoluções gentis que tecem pelas frestas, – com um novo tipo de inteligência coletiva – , um mundo possível”, diz. Um mundo possível, segundo ela, não só sobre os pequenos ataques, mas contra monstruosidades como Belo Monte, o genocídio dos povos originários, o assassinato impune do Rio Doce e todas as formas como nossa sociedade se anestesia e prefere ignorar as atrocidades perpetradas contra a natureza e os povos sagrados”, resume. Nesse fio incerto”, pondera Andrea “nos equilibramos”. E conclui: Acho que só nós resta resistir”.

Segundo a fotógrafa Pops Lopes, presente ao mutirão da Praça da Nascente, os bichos da praça agradeceram os cuidados que receberam. Difícil discordar quando a gente vê essas imagens lindas que ela captou.

pops 1

pops 2

pops 3

pops 4
Obrigada Pops Lopes por essas lindas imagens!

Siga nosso site e continue lendo a sequência dessa reportagem na semana que vem.

  • Depois de publicado este texto, soubemos que vários outros coletivos estiveram presentes.