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A convivência com a natureza foi questionada e problematizada pela cientista americana Rachel Carson em livro-símbolo nos anos 60 e continua sendo uma questão mal resolvida no Brasil do século XXI.

Biologia Marinha foi a primeira área de expertise da norte-americana Rachel Carson (1907-1964), que acabou se tornando conhecida como a primeira ambientalista do mundo. Isso porque, depois de vários estudos sobre os oceanos, Carson começou a questionar a ideia de que, para potencializar o uso da natureza, a humanidade poderia simplesmente dominá-la. A estudiosa concentrou esforços em provar os efeitos negativos dessa interferência. Em seu famoso livro, Silent Spring (1962), ela alertava para os perigos que essa falsa mentalidade de progresso tecnológico, invasiva e de controle sobre a natureza, traria aos seres vivos e ao ambiente . Ela criticava, por exemplo, o uso indiscriminado de pesticidas na agricultura, algo que se tornou ainda mais ostensivo depois da Segunda Guerra Mundial.

ddt_govtCarson expôs, particularmente, os perigos do DDT. Vale lembrar que o famoso DDT (dicloro-difenil-tricloetano), já sintetizado desde 1874, passou a ser usado como o primeiro inseticida moderno sintético em 1939 e só foi abolido nos Estados Unidos em 1972, depois de comprovados danos ao meio ambiente, ao seres humanos e a várias espécies, entre elas a águia de cabeça branca (bald eagle), ave-símbolo dos Estados Unidos, que graças aos efeitos do DDT quase foi extinta.

O livro foi tão contundente em seus argumentos (além de bióloga, Carson era também muito boa escritora) que levou o governo americano a tomar medidas efetivas para regular o uso de pesticidas na agricultura.

Silent SpringRCarson

Pyriproxyfen e o Brasil

Mais de cinquenta anos depois da morte de Rachel Carson, sabe-se que os pesticidas afetam o equilíbrio ambiental e causam efeitos devastadores às populações expostas ao seu uso. Recentemente, essa discussão esteve nos noticiários porque um grupo de médicos argentinos, por meio do INFORME de Médicos de Pueblos Fumigados sobre Dengue-Zika, microcefalia y fumigaciones masivas con venenos químicos levantou a hipótese de que o surto de microcefalia, que desde outubro do ano passado já afetou milhares de recém-nascidos no Brasil (segundo a OMS 6.480 casos suspeitos de microcefalia por Zika foram notificados, a maioria deles no Nordeste; 2.212 foram investigados e 863  confirmados com anomalias cerebrais), estaria ligado não ao zika vírus, per se, como alardeado na imprensa mundial, mas ao uso do larvicida Pyriproxyfen (nome comercial: Sumilarv), produzido pela Sumitomo Chemicals. O larvicida-inseticida é aplicado nas caixas d’água como forma de combate aos vetores de certas doenças, entre elas o mosquito Aedes Aegypti, transmissor da dengue, da febre chikungunya e do vírus Zika.

Aedes AegyptiAedes Aegypti: vetor do zika vírus

Segundo o informe, esta empresa japonesa seria uma subsidiária da multinacional americana, Monsanto. O documento afirma ainda que o Zika apesar de afetar 75% das populações dos vários países onde está presente não teria até o momento causado nenhum outro sintoma tão grave ou de alguma forma relacionado à diminuição do cérebro de fetos, como o que se tem observado nos últimos dois anos. A tese desse grupo é que o fenômeno coincide com a aplicação do larvicida ,que provocaria efeitos de mutação similares nos mosquitos que busca eliminar.

A denúncia foi prontamente rebatida pelo Ministério da Saúde brasileiro, que argumentou usar o produto sob recomendação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que por sua vez tem o aval da OMS. O mesmo grupo de cientistas anunciou, pouco depois de divulgar seu informe, que recebeu comunicado da Monsanto. A corporação exigiu que se dissociasse seu nome da empresa japonesa, com a qual afirmam não ter qualquer conexão. Ainda contra a denúncia, a Sumitomo informou que o Pyriproxyfen também é registrado para o combate do Aedes Aegypti em países como Turquia, Arábia Saudita, Dinamarca, França, Grécia, Holanda, Espanha. Desde 2010, a Colômbia e a República Dominicana também passaram a utilizar o produto.

Brasil: campeão mundial em agrotóxicos

Se a denúncia tem algum fundo de verdade ou não, o fato é que a hipótese levantada foi atacada por sua falta de evidência científica e, em muitos casos, por considerar perigosa a sugestão de que se deixe de usar o produto, o que causaria impacto sobre outras doenças associadas ao mosquito (confira afinal todos os links utilizados como fonte para este post). Apesar disso, e da reação do governo federal brasileiro, um estado, o Rio Grande do Sul, decidiu abolir o uso do Pyriproxyfen.

Ainda que não se possa afirmar que o Sumilarv seja o causador da microcefalia, — e que infectologistas bem reputados no Brasil continuem afirmando que as implicações do zika vírus incluem outros problemas além deste mais propalado — , há de se lembrar que nem sempre um produto legalmente aprovado dentro do país seja realmente seguro para a saúde das populações a ele expostas . Especialmente quando se sabe que desde 2008 o Brasil carrega o triste título de maior consumidor de pesticidas do mundo.

fumigação
Fumigação. Foto: Divulgação

Entre os 50 ingredientes ativos de agrotóxicos mais usados no país, 22 são proibidos na Europa. Em 2008, a Anvisa reavaliou 14 substâncias usadas na fabricação de cerca de 200 agrotóxicos, que de acordo com análises internacionais estão relacionados a doenças pulmonares, distúrbios hormonais e até mesmo câncer e má formação fetal. Apenas cinco dessas substâncias (cihexatina, endossulfam, forato, metamidofós e triclorfom) foram banidas e duas (acefato e fosmete) foram mantidas no mercado com restrições de uso. Entretanto, a própria Anvisa apontou em pesquisa que, em 2014, 31% dos alimentos da cesta básica do estado de São Paulo continham agrotóxicos proibidos ou em quantidade acima da permitida .

O Ministério da Saúde também aponta dados preocupantes. Entre 2007 e 2014, foram notificados 34 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil. E, pior, pesquisadores alertam que esses números não refletem a realidade, uma vez que para cada caso notificado, 50 seguem sem registro. A legislação brasileira é fraca quando se trata de exigir que os fabricantes de agrotóxicos garantam a segurança de seus produtos. Além disso, as reavaliações dos ingredientes nocivos dos agrotóxicos são usualmente impedidas por lobbies de fabricantes e fazendeiros e ações judiciais por eles movidas, muitas das quais podem se arrastar por anos, enquanto o uso dos produtos em questão permanece inalterado.

Fontes:

Rachel Carson

The Story of Silent Spring

Informe de médicos sobre o vírus zika, oxitec e veneno da Monsanto

INFORME de Médicos de Pueblos Fumigados sobre Dengue-Zika, microcefalia y fumigaciones masivas con venenos químicos

Monsanto amenaza y acusa a la Red de Médicos de Pueblos Fumigados Fabricante rebate suspeitas de que larvicida cause microcefalia

Quatro problemas estruturais brasileiros que a epidemia de zika revela

Brasil ainda usa agrotóxicos já proibidos em outros países

A luta constante contra os agrotóxicos

Report says pesticide is to blame for microcephaly outbreak — not zika

A Viral Story Links the Zika Crisis to Monsanto. Don’t Believe it