Adepto e praticante da permacultura no Brasil e um dos fundadores da ONG Veracidade, nessa entrevista exclusiva ao Horizonte Sustentável (e a primeira do blog!), Djalma Nery Ferreira Neto, 28 anos,  conta um pouco sobre como chegou à permacultura, a história da Veracidade e as dificuldades de tornar a realidade. Fala ainda por que decidiu, num momento de tanto descrédito da política brasileira, tornar-se pré-candidato à câmara de vereadores de sua cidade, São Carlos.

A palavra permacultura inicialmente surge da junção de duas outras: permanent agriculture. Logo, porém, sua abrangência foi muito além e passou a significar algo mais amplo:  permanent culture, uma cultura cujo conceito multidisciplinar envolve não só agricultura, mas ciências naturais, arquitetura, economia solidária e consumo, só para mencionar algumas das palavras-chave do movimento. Idealizada nos anos 70 pelos australianos Bill Mollison e David Holmgren tendo como base uma série de princípios éticos e filosóficos, a permacultura resume um sistema de vida que se norteia por ambientes humanos sustentáveis em harmonia com a natureza.

Como representante desses princípios, a Veracidade é uma estação de permacultura, registrada como organização da sociedade civil sem fins lucrativos, e que tem sede em São Carlos, cidade do interior paulista com mais de 200 mil habitantes e a pouco mais de 200 km da capital. A experiência da Veracidade, segundo Djalma “a primeira e única da cidade”, tem servido de  inspiração para outras ações e ajudado a expandir e consolidar o conceito e a prática da permacultura no Brasil. Acompanhe a seguir os principais momentos da nossa conversa com Djalma Nery.

HS: Como você chegou à criação da Veracidade e à permacultura?

DN: Para responder a essa pergunta vou começar com a minha história pessoal. Não dá pra me desvincular da história da Veracidade porque eu sou um dos fundadores e também porque minha história se parece com a de muita gente. Entrei em contato com esse universo em 2008, quando estava na faculdade em Araraquara, através de amigos que estavam começando uma horta na república em que eu morava. Ao mesmo tempo, meu pai iniciou um trabalho com horta em casa, em São Carlos, e passei a observar essas duas experiências e a perceber o quanto eu não sabia sobre esse tema. A partir daí foi um processo muito rápido, que foi do interesse à fascinação. Como a universidade é um lugar muito fértil para o encontro de pessoas com muitos interesses e ideias, o acesso à informação foi rápido mas profundo. Em pouco tempo eu estava bem munido de todo um instrumental de pesquisa, de informação e comecei a ter uma noção mais ampla sobre tudo aquilo. Quando vi que o que realmente me interessava não era só a agricultura mas a conexão com a natureza ou a reconexão com esse mundo natural do qual a sociedade tem nos apartado ou busca nos apartar, vi também que havia muitas pessoas buscando essa reconexão por caminhos diferentes e um deles era a permacultura, que é bastante amplo, que integra muitos universos e isso me agradou: essa ampla integração de frentes de trabalho, conhecimentos e universos dentro de um conceito, de uma prática unificada.

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Foto oficial da fundação da Veracidade, primeira estação de permacultura de São Carlos, SP.

HS: A criação da Veracidade foi, então, o próximo passo?

DN: Nessa época, descobri também que havia muitos grupos espalhados pelo Brasil e pelo mundo que viviam em comunidade desenvolvendo e aperfeiçoando a prática da permacultura , da agroecologia, da vida em comunidade. Decidi então visitar e conhecer esses grupos. Dizem que toda aventura começa com uma viagem e comigo não foi diferente. O que consolidou meu interesse e minha caminhada nesse universo foram algumas viagens que fiz no período entre 2009 e 2011; viagens picadas, durante férias da universidade e um semestre em que tranquei o curso. Viajei basicamente de carona, comecei a fazer viagens em grupos de pessoas com o mesmo interesse para conhecer fazendas, grupos, coletivos que adotavam a permacultura. Nos lugares que visitamos, a gente oferecia nosso trabalho em troca de alimentação e hospedagem. Isso barateava nossos custos e nos dava o aprendizado que buscávamos. Participei de várias atividades, desde construção a plantio de florestas, tive acesso a perspectivas diferentes e essas experiências todas consolidaram meu conhecimento e o de outras pessoas que estavam fazendo essa mesma trajetória. Em 2011, depois de uma viagem mais longa, de sete meses, em que visitei o Acre e o Peru, voltei a minha cidade natal, São Carlos, trazendo o que eu tinha coletado e senti que era meio uma missão a gente disponibilizar esse conhecimento de alguma forma, em um local em que ele ainda não existia. Realmente havia uma lacuna na cidade. A Veracidade é a primeira estação de permacultura em São Carlos, primeira e única por enquanto.

Dizem que toda aventura começa com uma viagem e comigo não foi diferente. O que consolidou meu interesse e minha caminhada nesse universo foram algumas viagens”

HS: Mas a Veracidade foi criada só em 2012, certo?

DN: Um ano depois da minha volta, em abril de 2012, lançamos um chamado para uma semana de oficinas, discussões, conversas e em setembro de 2012 oficializamos a Veracidade. Decidimos abrir uma ONG, cuja sede é uma casa de 1000 metros quadrados, que é a casa dos meus pais, numa área urbana de São Carlos. Nessa época, a gente já tinha começado a receber voluntários para trabalhar nesse espaço e conceber esse modo de vida, assim como fomos recebidos em outras comunidades. Hoje moramos aqui em família e entre amigos. É uma comunidade urbana, um espaço para experimentar , um laboratório. De lá pra cá, são quase quatro anos de experiência formalizada, e a gente aprendeu muitas coisas, desde nos aprofundar nas técnicas da permacultura até os meandros da burocracia do estado, por sermos uma organização formal.

HS: E quem faz parte do Veracidade?

DN: Éramos 40 pessoas mas nem todas estavam cem por cento comprometidas, eram mais entusiastas. Hoje somos cerca de 10 pessoas diretamente envolvidas, a maioria mulheres, jovens de 20 e pouco a 30 e poucos anos predominantemente, com algumas exceções, e a maioria universitária.

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Canteiros sendo preparados para o lançamento da Veracidade, em 2012.

HS: Como tem sido a experiência desse tempo de vida do grupo?

DN: A gente tem conseguido muita coisa e ao mesmo tempo pouca coisa, porque as expectativas são muitas. Temos uma noção bem clara agora dos desafios. Percebemos que não bastam boas intenções e competência para as coisas acontecerem. Depois que viramos uma instituição tentamos desenvolver políticas públicas em parceria com a prefeitura local e percebemos que as negociatas do mundo institucional são bem tenebrosas e espúrias. Achávamos, talvez por inocência, que por sermos um grupo de pessoas competentes, com boas ideias, bem formatadas e esquematizadas, poderíamos influenciar as decisões. A gente viu que infelizmente o sistema político brasileiro permite que interesses individuais estejam acima dos interesses coletivos e são esses interesses que balizam as políticas públicas.

HS: Você pode nos dar um exemplo concreto disso?

DN: A gente começou por exemplo a propor uma central de compostagem municipal para São Carlos e vimos que isso abalava interesses de pessoas que dominavam e dominam as estruturas institucionais da cidade e que modelam a legislação a seu bel prazer. Temos empresas que fazem a coleta de lixo no município e não têm interesse em desenvolver uma política pública que diminua a necessidade desse serviço, pois consequentemente diminuiria o repasse financeiro que recebem pelo serviço que prestam. Há uma estatística dando conta que cerca de 55% dos resíduos totais de São Carlos são de origem orgânica. Se conseguirmos implementar uma política pública de compostagem de resíduo residencial e comercial expressiva que desvie metade dos resíduos que hoje vão para o aterro sanitário isso vai afetar a logística de trabalho dessas empresas, que muitas vezes financiam as campanhas dos políticos eleitos. Vimos que os poderes executivo, legislativo e as empresas tinham uma relação muito mais promíscua do que podíamos imaginar. Percebendo isso, resolvemos nos posicionar e assim em 2013, nosso primeiro ano de existência oficial, desenvolvemos ações políticas, questionando, até juridicamente, medidas da prefeitura e suas ações arbitrárias. Isso resultou numa inimizade política que cerceou qualquer projeto que a gente apresentasse para a prefeitura daqui . Ficou óbvio que esta, como 90% das administrações municipais, não está nem um pouco preocupada com a população e o bem estar coletivo.

Hoje a gente tem noção que é importante criar articulação com os poderes estabelecidos, com os poderes públicos e as empresas mas também a certeza de que só a organização civil, autônoma, independente e a criação de espaços locais de deliberação vão realmente apresentar uma mudança substancial”

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A marca da Veracidade: trabalho em grupo, com um dos murais do espaço ao fundo.

HS: O que se pode aprender de episódios como esse?

DN: Conhecemos os limites da ação civil auto organizada. Mas também as possibilidades. Hoje a gente tem noção que é importante criar articulação com os poderes estabelecidos, com os poderes públicos e as empresas mas também a certeza de que só a organização civil, autônoma, independente e a criação de espaços locais de deliberação vão realmente apresentar uma mudança substancial. Só quando deixarmos de ser refém das estruturas estabelecidas e começarmos a ser protagonistas das nossas próprias vidas.  E este é um dos grandes trunfos da permacultura, porque nos permite deixar de ser reféns principalmente pelo âmbito material da existência: a comida, a energia elétrica, a água. Todo esse abastecimento nos é entregue num pacote pronto que a gente aceita e a partir daí acaba enredado numa armadilha Então, temos que promover uma espécie de transição em busca de autonomia, para poder questionar o sistema de uma maneira mais ampla, deixando de ser cúmplice de um processo com o qual não concordamos.

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Djalma trabalha com membros  e voluntários do grupo.

HS: Em sua opinião,  como a Veracidade se aproxima ou se distingue dos outros coletivos ambientalistas?

DN: Como pesquisador da história da ecologia e dos movimentos ambientalistas [Djalma é estudante de mestrado da Esalq, em Piracicaba, e trabalha em um projeto de mapeamento da permacultura no país], acabo recorrendo à história para entender um pouco onde nós estamos e como nos posicionamos. O debate ecológico, ou sua centralidade, é relativamente recente em termos históricos. Começou a entrar na ordem do dia a partir dos anos 70. Não que não se falasse nisso antes, mas começou a ter mais relevância e é natural que algo que ganhe tanta projeção acabe sendo interpretado de maneiras diferentes e criando algumas correntes divergentes, sob um mesmo conceito . Alguns teóricos fazem uma sistematização dessas correntes, mas não cabe aqui entrar em discussões muito teóricas e técnicas. Eu, pessoalmente, e a Veracidade, a gente se alinha com uma escola da ecologia política que se distingue do ambientalismo mais convencional, porque percebemos que houve uma grande cooptação desse conceito. Preferimos dizer que somos ecologistas.

HS: E qual é a crítica a esta escola mais ‘ambientalista’ digamos assim?

DN: Por exemplo, a gente tem hoje o chamado desenvolvimento sustentável, que é uma grande polêmica dentro do movimento, um oximoro, uma contradição, porque se esse sistema se baseia no crescimento econômico infinito e o nosso meio é finito, automaticamente o desenvolvimento se torna insustentável. Dentro dessa visão, tratam a natureza como recursos naturais e isso é muito sintomático, porque recursos são coisas que servem ao ser humano; é uma visão antropocêntrica da natureza, então você preserva as águas porque elas nos servem, você preserva as árvores porque elas nos servem e não porque elas tenham um valor intrínseco. Nós, ao contrário, defendemos primeiro que a natureza tem um valor em si, intrínseco. Não a vemos como um amontoado de recursos naturais úteis ao homem. Defendemos, como o economista francês Serge Latouche, o ‘ ‘decrescimento sustentável’.   A gente defende que é possível distribuir a renda, a tecnologia, o acesso material que a humanidade desenvolveu sem precisar explorar a natureza, sem que se mantenha o mesmo ritmo predatório de exploração. Além disso, quando se fala em meio ambiente, o que é isso? É um cenário que está ao nosso redor, onde somos protagonistas. Para nós, a natureza não pode ser vista como um cenário, como um meio por onde o ser humano transita. Independente da existência do ser humano esse mundo existe e vai continuar existindo. A gente faz parte dessa outra escola. Há muitos coletivos que estão mais atrelados a essa visão antropocêntrica da natureza e alguns que ao mesmo tempo desenvolvem uma visão romantizada, arquetípica, que fala em natureza e já se pensa no campo… A gente tem uma visão mais atualizada. Por isso, também, trabalhamos com a natureza dentro da cidade.

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Um dos espaços dentro da área da Veracidade.

HS: De qualquer forma, você vê uma ‘evolução’ nesses movimentos?

DN: Há uma evolução em termos de aprendizagem, não linear , porque a história também não é linear: ela avança, retrocede… Acho que o aprendizado que a gente tem recolhido está apontando para um outro futuro, para uma outra forma de fazer ecologia, de fazer política. Eu gosto muito do Jose Mujica, ex-presidente do Uruguai. Numa entrevista, ele disse que não existe um problema ecológico, existe um problema político. É um grande equívoco segmentar as lutas, pra nós é importante reconectar essas questões. O problema é político e essencialmente humano.

HS: E há como resolvê-lo?

DN: O desafio é conseguir realmente implementar esse tipo de iniciativa, de articulação, sem os poderes hegemônicos que dominam tantas esferas da nossa vida. É um pouco daquela luta de David contra Golias. A gente tentando promover uma contracultura, autonomia, espaços de deliberação coletiva, enquanto a população em geral vem sendo massacrada por todos os aparelhos de comunicação , aparelhos hegemônicos da mídia de formulação de ideias, que alienam as pessoas e as colocam em caixinhas…Acaba sendo uma luta desleal porque nossos canais de influência são muito menores. A gente faz um trabalho de formiguinha, então esse é que é o desafio: como sendo David derrubar o Golias? Mas esse desafio também traz uma resposta, pelo menos na minha concepção e na da Veracidade, que é a articulação em rede. Quando conseguirmos unificar o discurso de maneira democrática e participativa, propondo concreta e efetivamente uma nova maneira de existir no mundo, um novo projeto de sociedade, aí a gente vai entrar numa outra etapa de civilização, pois teremos conseguido propor uma resistência ao que está instituído. Vejo com bons olhos iniciativas de conexão porque elas são muito necessárias. Esse é o desafio: lutar contra o poder hegemônico, romper essas barreiras e resistir.

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O entulho restante de uma reforma na sede da Veracidade preencheu os pneus velhos que por sua vez serviriam como uma escada de acesso para conectar terrenos em níveis diferentes.

HS: No mês de maio, durante a edição dessa entrevista , Djalma Nery lançou sua pré-candidatura a vereador em São Carlos, pelo PSOL. Voltamos, portanto, a contatá-lo perguntando sobre os motivos da pré-candidatura e se de certa forma ela não iria de encontro aos princípios da permacultura. Veja alguns destaques da conversa na qual Djalma explica sua decisão:

DN: Há muita divergência sobre a compatibilidade ou não da ação permacultural com a ação política institucional. Infelizmente, a palavra política, no imaginário popular, se reduziu às instituições políticas e não à atuação do dia a dia: as práticas cotidianas que na minha visão também são políticas. Na minha concepção tudo é político: comer, vestir, plantar… Por isso não existe incompatibilidade entre permacultura e ação política.

Existe, sim, muita confusão e muita gente que, por traduzir política como política partidária institucional, não quer se inteirar e acaba entrando na ideia do autonomismo onde não se discutem os problemas em seu nível macro, em sua escala social. Acaba-se entrando um pouco na síndrome da fazenda feliz, na qual o que acontece da porteira pra fora não importa. Isso pra mim é muito complicado e ilusório. Não existe paraíso isolado, não existe auto-suficiência porque nós somos interdependentes, quer queiramos ou não. Por isso acredito na coletivização de certas lutas, pautas e debates.

…embora a gente discorde desse sistema hierárquico, centralizador e burocrático, reconhecemos que é importante ocupar os espaços de decisão para implementar a possibilidade de outros mundos possíveis”

Em 2008, o próprio Bill Mollison lançou um documento chamado Permacutlure People’s Party – Manifesto no qual elencava vários pontos em que a permacultura poderia contribuir para a construção de programas políticos de parlamentares australianos. Ele queria que a permacultura fosse levada em consideração ao se  pensar políticas públicas. E a gente sabe muito bem do potencial transformador da permacultura em todas as áreas da vida, desde a produção de alimentos, gestão de uso da água e resíduos até política energética. Ali ele finalmente reconheceu tudo isso. A permacultura trabalha com uma lógica coletivista horizontal, esse é o nosso mundo ideal, mas esse mundo ainda não existe concretamente. A gente aponta para uma sociedade que pode existir baseada em experiências que a gente realiza em espaços restritos mas que se pretendem como inspiração para experiências maiores. E sabendo que as coisas não se transformam do dia pra noite, embora a gente discorde desse sistema hierárquico, centralizador e burocrático, reconhecemos que é importante ocupar os espaços de decisão para implementar a possibilidade de outros mundos possíveis . É como atuar nas brechas, trabalhar de dentro para desfazer . Eu estou tranquilo para encarar esse desafio…Claro que também tem um perigo, que é a grande cilada da política institucional burguesa, o da pessoa começar a se identificar com uma outra classe social e que levada a conviver com pessoas desse meio se deixa influenciar e passa a ver o mundo a partir dessa experiência da abundância. Por isso, quando a gente entra nesse mundo deve se fortalecer para estar pronto para não cair nesse abismo, não ser cooptado e esquecer nossas origens. E eu me sinto fortalecido. Não tenho ilusão de que vou transformar a sociedade hierarquicamente. Não posso controlar o sistema político como um todo. Nosso desafio é mostrar que há outras possibilidades, é usar essa estrutura para demonstrar a viabilidade de outras formas, experimentar e inspirar projetos. E assumir um caráter de denúncia, ou seja, de fazer a ponte, de estar lá dentro não pra manter mas denunciar conveniências. O PSOL é o partido que mais se demonstra aberto a esse movimento horizontal , mas não tenho nenhum apego. Discordo dessa coisa de ver partido como time de futebol. A permacultura pode ser importante ferramenta de gestão pública e eu tenho essa esperança. Estou pronto também para, se for o caso, estar enganado e fazer autocrítica.

Fotos: Todas as fotos usadas nesta entrevista, incluindo a do entrevistado, foram gentilmente cedidas por Veracidade.