Especial

O que uma cidade escandinava de pouco mais de 300 mil habitantes pode nos ensinar sobre urbanismo sustentável? Não deixe de conferir na série de posts que iniciamos hoje.

No ano que vem, 2017, Aarhus, na Dinamarca, vai ser a capital cultural da Europa, ao lado de Paphos, no Chipre. Como anfitriã do evento, são muitos os preparativos que seguem a todo vapor pela cidade. Embora bem menos famosa que Copenhage, a capital dinamarquesa, Aarhus, como segunda maior cidade do país com cerca de 320 mil habitantes, também exibe bons modelos de urbanismo. Aproveitando o evento europeu, vale a pena investigar e se deixar inspirar por alguns dos projetos que têm transformado a cidade em um lugar que prima não só pela cultura mas pela qualidade de vida de seus habitantes.

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Catedral de Aarhus, no centro da cidade, uma das capitais culturais da Europa em 2017.
Foto: Henrik Bentsen/VisitAarhus/2014

Entre as muitas ideias interessantes que chamam a atenção em Aarhus, o sistema de coleta de lixo é, sem dúvida ,  um deles. Trata-se de um processo de lixeiras semi-subterrâneas que vem sendo usado, com pequenas alterações, em cerca de 50 cidades europeias. A tônica é a mesma, ou seja, ter uma lixeira com profundidade que vá além da que se vê na superfície das calçadas, capaz assim de receber o lixo já pré-selecionado e em maior quantidade. Isso resulta em calçadas livres de lixo acumulado e, portanto, mais limpas, além de coletas menos frequentes, o que representa, a longo prazo, economia de dinheiro e energia.

Como funciona

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Uma das ‘ilhas’ com um receptáculo para vidro e pequena entrada para baterias e outra para papel.
Foto: Derek Pardue

Cada lixeira tem capacidade para 4 metros cúbicos de resíduo e  são coletadas em intervalos regulares por um caminhão com apenas um funcionário: que faz as vezes de motorista e coletor , ou melhor, de operador da engenhoca que coleta o lixo de fato, sem contato manual. Isso porque um sistema de controle remoto dá conta do guindaste que recolhe a lixeira e a descarrega no caminhão apropriado. Veja um exemplo da rapidez no sistema de coleta neste youtube  vídeo

As lixeiras estão espalhadas por todo o município, de forma que cada morador possa ter no seu bloco pelo menos um receptáculo de lixo comum e um de papel. Os de vidro são um pouco mais esparsos, mas muitos supermercados também aceitam garrafas e latinhas de alumínio em troca de cupons de crédito, o que acaba atraindo a preferência de algumas pessoas, sobretudo dos estudantes; Aarhus é sede da maior universidade do país com uma média de 44.500 alunos, entre os de graduação e pós graduação. A coleta também é otimizada porque as lixeiras antes de serem despejadas no caminhão são pesadas. Esse procedimento gera um banco de dados que dá uma melhor ideia da frequência da necessidade de coleta em cada ponto da cidade, que pode ser bem variável de um lugar a outro. Dessa forma, não se corre o risco de se coletar uma lixeira ainda pela metade nem de chegar quando ela já esteja acima de seu limite. O sistema não é perfeito, claro. Nas festas de fim de ano de 2015, por exemplo, em algumas áreas centrais da cidade havia containers lotados. O aumento do lixo gerado pelas festividades combinado à escala de folgas dos feriados fez seus estragos.  Mas em geral essas ocorrências são raras.

Beleza funcional

Apesar de não serem exclusividade de Aarhus e de terem sido inicialmente implantadas na cidade em 2008, o sistema, que conta hoje com cerca de 900 lixeiras começou com metade disso e tem algumas peculiaridades interessantes que vão além do uso inteligente da tecnologia. A Agência de Proteção ao Meio Ambiente, um departamento do Ministério do Meio Ambiente dinamarquês, por meio de um artigo detalhado, ressalta alguns pontos que classifica como lições aprendidas durante o planejamento e instalação do sistema.

Como não poderia deixar de ser, num país sempre na dianteira em design e arquitetura, a estética das lixeiras foi pensada para integrar-se à paisagem da cidade. Todas as lixeiras têm linhas arredondadas e são de cor grafite, que se mescla bem a área do entorno, de granito. Os receptáculos ficam sobre piso antiderrapante. As lixeiras estão agrupadas em ‘ilhas’ e por isso não tomam o espaço da calçada, mas significam menos vagas para quem estaciona o carro na rua (sobre mobilidade urbana em Aarhus, falaremos em post futuro).

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A alça desliza suavemente, facilitando a entrada e descarte do saquinho de lixo. Foto: Derek Pardue

A preocupação estética inclui detalhes como a escolha de puxadores que além de bonitos sejam anatômicos, eficientes e fáceis de usar, com um sistema rotatório que faz o saquinho de lixo desaparecer imediatamente quando você fecha a tampa da lixeira. Para reciclar as garrafas, um sistema foi criado no qual as garrafas não se partem, garantindo a integridade do vidro para a reciclagem e um processo mais silencioso.

O aspecto estético nunca está dissociado da facilitação de uso. O melhor exemplo disso é que as lixeiras são acessíveis a cadeirantes. Outro fator de impacto ambiental é que a diminuição da necessidade de coleta minimizou também o barulho associado a essas atividades.

Particularidades históricas

Segundo o mesmo artigo, no entanto, o fato mais interessante sobre a implantação do ‘novo’ sistema de lixo está em sua história. A prefeitura coletava o lixo diretamente em cada casa e prédio da cidade. Ocorre que numa cidade antiga como Aarhus nem sempre os acessos eram fáceis. Ruas e entradas estreitas dificultavam e constantemente atrasavam o trabalho dos lixeiros, que sob essas condições ainda tinham de carregar peso considerável. Nos anos 90, para aliviar o problema, a prefeitura determinou que os moradores deveriam ter lixeiras com rodas. Quem não as tivesse deveria colocar o lixo nas calçadas. Em 2004, com calçadas constantemente feias e atulhadas de lixo, uma lei exigia que os moradores cuidassem eles próprios do seu lixo e da situação. Dessa vez, o protesto aconteceu por parte de organizações de moradores e conselhos de cidadãos que exigiam que o poder público encontrasse uma solução holística para a crise. Juntos, administração pública e munícipes buscaram opções e o sistema atual nasceu, literalmente, da sugestão de um cidadão comum.

No Brasil, em uma sociedade calejada por escândalos de corrupção apontados em várias obras públicas , o desafio seria ainda maior. Daí a importância de que uma iniciativa como essa fosse respaldada e fiscalizada pela população. Como temos visto pelas experiências dos coletivos paulistas em matérias anteriores, ocupar a cidade e resgatar o espaço público tem sido o caminho para mudar mentalidades. A ideia está lançada.

Notas úteis

Abaixo, segue uma lista de pontos importantes que devem ser observados, de acordo com a experiência dinamarquesa, para a adoção de sistema similar.

  • Custos e planejamento: o sistema semi-subterrâneo é caro pois exige investimentos de infra-estrutura. As escavações envolvem mais do que simplesmente o trabalho de cavar buracos. Durante o processo em Aarhus descobriram a passagem de cabos e tubulações obsoletos sequer citados em plantas municipais, por exemplo. Por isso, os gerentes do projeto insistem na necessidade primordial de planejamento bem como flexibilidade e acompanhamento de cada passo durante a construção e implantação do sistema. Nesse sentido, contar com empreiteiras confiáveis, cumpridora de prazos e com alto nível profissional pode ser determinante.
  • Monitoramento permanente tem sido a chave do sucesso. Mesmo depois de implantadas, as operações devem ser reavaliadas cotidianamente e readaptadas quando necessário para que a estrutura seja de fato sustentável.
  • Processo democrático e transparente: o envolvimento da população e seu apoio são chave para que o empreendimento seja bem sucedido. Quando cada cidadão se sente parte da mudança, cuida para que se realize a contento. O paradoxo é que se o sistema não for mandatório os custos podem ser ainda maiores. A implantação massiva barateia os custos materiais. Boas campanhas de conscientização com muita informação é usualmente uma saída indicada.
  • Investimento de longo termo: Calcula-se que dez anos sejam necessários para que haja retorno financeiro com o sistema, devido à complexidade da instalação para que funcione de forma adequada.
  • Otimização da mão de obra: A questão trabalhista é sempre mais delicada num país das dimensões do Brasil, que tem grandes contingentes de mão de obra de baixa qualificação. Por isso, é preciso pensar em alternativas quando se substitui os coletores por sistemas mecanizados. Além de abrir a oportunidade para que alguns dos funcionários sejam treinados e reaproveitados como operadores dos caminhões-coletores, há ainda a possibilidade de remanejá-los para a triagem do material reciclável. Na experiência de Aarhus, notou-se que os trabalhadores envolvidos no manejo de resíduos passaram a se sentir mais valorizados e respeitados com o novo sistema.
Crédito da imagem destacada: Photopop/VisitAarhus