Reportagem

water-1314955_1920Os rios
[no meu caminho]
não são como os de Manoel de Barros
Não têm voz,
não têm cheiro e
sequer serpenteiam na superfície.

Amaldiçoados em sua gana de fluxo
foram mortos no nascedouro
Para eles, não foram feitos placas ou epitáfios.
Jazem, agora, no lado escuro
à espreita de uma insurreição.

© Pnina Bal

Nesta terceira e última reportagem da série sobre os coletivos de São Paulo, falamos dos rios que passam por nossas vidas ou sobre os quais passamos sem nem perceber . E das pessoas que se importam com eles.

Rios pra que te quero?

Para quem vive em São Paulo, soam familiares os versos da poeta carioca, radicada em São Paulo, Pnina Bal. Muitos anos antes, outro escritor, o mineiro Wander Piroli (1931-2006), já assombrava seus jovens leitores como precursor do tema ecológico em seu livro Os Rios Morrem de Sede. Todo mundo sabe, ou deveria saber, que os rios urbanos têm sido abandonados e contaminados. O que muita gente parece não saber é que nem sempre eles estão mortos, como prenunciava Piroli,  mas simplesmente enterrados sob nossas ruas. Quem sabe, como diz a poeta, “à espreita de uma insurreição”.

Uma insurreição que precisa do ‘auxílio luxuoso’ de muitas mãos. É aí que entra mais uma vez a ação dos coletivos, os grupos sobre os quais esse blog já se ocupou em dois posts anteriores ( Ocupe e Abrace: a experiência da Praça da Nascente e Sobre Hortas e Cidadania) e o faz aqui mais uma vez, fechando a série, mas nem de longe encerrando a conversa.

Os coletivos e os rios

Sim, os rios são também uma preocupação dos coletivos paulistanos, ao lado do espaço e da agricultura urbanos. Como disse o geógrafo Luiz de Campos em uma entrevista ao LabVerde de 2013 : “Os rios são o ponto de partida, mas são quase uma desculpa para se falar sobre a cidade, sobre as pessoas e sobre nossa relação com o ambiente (…) A partir da hidrografia você vai falar de segurança, de mobilidade, de lazer, de espaço público, além da relação que a gente tem com a natureza da cidade”. Por saber que o desaparecimento dos rios compromete a sustentabilidade da cidade e afeta a qualidade de vida de seus habitantes de várias maneiras é que ele e o arquiteto e urbanista, José Bueno, resolveram criar a iniciativa Rios e Ruas, em 2010. Desde então promovem oficinas chamando a atenção dos participantes: primeiramente, para a existência dos rios em São Paulo e no processo conscientizando sobre a importância de recuperar esses rios ou, como eles dizem, de reivindicar os rios que a cidade perdeu.

Na mesma entrevista à LabVerde, Bueno explicava como as atividades da Rio e Ruas funcionam: “As oficinas incluem uma parte conceitual onde são apresentados os mapas e a hidrografia. Tem um grande quebra cabeça do mapa de São Paulo, sem as ruas, mostrando a macro realidade dos rios. É uma atividade lúdica para sensibilizar a experiência”. Ele acrescenta que “a experiência culmina num passeio, que é o coração da oficina Rios e Ruas”. Nessas expedições, a pé ou de bicicleta, eles fazem o reconhecimento de um rio e seguem seu trajeto até sua nascente e, algumas vezes, até a foz.

Nascente iquiririm
Participantes do primeiro encontro que resultou na formação do coletivo Nascentes do Iquiririm

Foi também por meio da Rios e Ruas que surgiu o coletivo Nascentes do Iquiririm e praça Rizzo, como Luiz conta ao Horizonte Sustentável: “O coletivo em torno das nascentes do Iquiririm nasce a partir de um convite que eu e o José Bueno fizemos no início de 2014 a um grupo de amigos e amigas para iniciarmos ações de ocupação e revitalização da área onde as nascentes estão localizadas. O local escolhido tem forte significado para nós, pois foi onde aconteceu a primeira expedição exploratória que eu e o Bueno fizemos quando nos conhecemos em 2010”. Segundo contam, quando se conheceram, Luiz teria dito a Bueno que, em São Paulo, estamos sempre a cerca de 200 ou 300 metros de um rio. Para comprovar a afirmação, a primeira expedição da Rios e Ruas foi exatamente na região de Vila Indiana, onde mora Bueno, e à nascente do Iquiririm que fica de fato a pouco mais de 100 metros de sua casa.

2014 cartaz
Como se vê pelo pôster de chamada para a ação inaugural do coletivo, enquanto salvam a cidade os grupos também promovem e curtem cultura e lazer.

O primeiro encontro do coletivo aconteceu lá mesmo nas nascentes em fevereiro de 2014 e reuniu gente que representava diversos coletivos, iniciativas e instituições como o Ocupe & Abrace, A Batata Precisa de Você, Parque Augusta, Hortelões Urbanos, Fluxus Design Ecológico e Instituto Árvores Vivas. O resultado desse primeiro encontro foi a criação de um grupo público de facebook Nascentes do Iquiririm e Pça Rizzo – Revitalização. Por meio desse canal, foi lançado o convite para um evento preparatório para um primeiro mutirão, que aconteceu em 15 de março e dessa vez reuniu um número maior de pessoas. Entre elas, moradores da área e professoras da Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, que fica na região. “Desse segundo encontro emergiram mais ideias para a realização do mutirão inaugural na área”, conta Luiz. Finalmente, em 22 de março aconteceu o SuperAção nas Nascentes do Iquiririm – Mutirão e Celebração pelo Dia Mundial da Água. Segundo Luiz, este evento reuniu mais de uma centena de pessoas e foi o pontapé inicial do coletivo. “Naquele dia foi realizada a parte inicial e mais trabalhosa da limpeza do terreno, abertura do riacho e do lago e sinalização das nascentes “, ele lembra.

De lá para cá, aconteceram dezenas de outras ações que incluem outros mutirões de limpeza, plantios, piqueniques, melhorias planejadas e encontros espontâneos. O trabalho mais recente é a instalação de uma calçada drenante. A ação, que parece ambiciosa, envolve a colaboração em várias frentes. “O projeto colaborativo é de Fernando “Fefa” Rodrigues e Guilherme Castagna, o material foi doado pela Prefeitura da Cidade Universitária da USP e a mão de obra fornecida pelo condomínio vizinho”, explica Luiz.

2014 Visita de Alunos do Amorim Lima nas Nascentes do Iquiririm 01
Alunos da Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, que fica na região,  visitam as nascentes.

Pra onde vai esse “rio” agora?

A iniciativa Rios e Ruas ganhou bastante projeção depois da crise de abastecimento de água em São Paulo . Com isso, lembra Luiz,  mais paulistanos passaram a saber sobre a existência dos milhares de cursos d’água invisíveis em São Paulo. “Hoje nosso foco está em realizar e inspirar ações para que milhões de pessoas passem a querer nossos rios limpos e livres”, planeja. Nossa meta é conseguir a abertura e recuperação de pelo menos um trecho de um rio urbano soterrado, uma espécie de exemplo de que isso é possível, um protótipo que demonstre o que queremos em maior escala para a cidade”.

2015-05-03 Mutirão neas Nascntes do Iquiririm - lado de dentro da USP
Mutirão no Iquiririm, na parte de dentro da USP.

Perguntado sobre a participação deles na feitura do novo Plano Diretor da cidade de São Paulo, Luiz conta que foram procurados para opinar sobre a questão dos rios urbanos da cidade, e que houve uma boa mobilização dos coletivos durante as discussões do projeto, mas as sugestões não foram contempladas no documento final do plano. Os impasses com o poder público, contudo, parecem não desanimar os coletivos nem Luiz e Bueno, que seguem realizando suas ações independentemente do apoio ou não dessas estruturas.

Coletivos plurais

Quando conversou com Horizonte Sustentável, o clima de polarização e acirramento político na cidade gerava um discurso de ódio que permeava as conversas em geral. Isso de forma alguma assustava Luiz. “Trabalharemos como sempre com foco na colaboração, naquilo que nós é comum, que contempla as pessoas que se aproximam de uma iniciativa. Na verdade, são imensamente mais numerosas e importantes as coisas que nos aproximam do que as que nos polarizam. A maior parte das questões que nos afastam nos são impostas, não emergem das nossas necessidades pessoais”, pondera.

Entre as características notadas durante a feitura dessa série de reportagens, uma das mais marcantes é a mobilidade que os participantes têm entre um coletivo e outro. Ou seja, podem trabalhar num mutirão numa horta da cidade esta semana e em outro numa nascente na semana que vem; ajudam no plantio de árvores de um grupo ou de outro, independentemente, mesmo que não seja no seu bairro. Não se sabe se essa postura vai ser permanente, mas a ideia que passam é que nos coletivos paulistanos não há ‘igrejinhas’e os conflitos, se existem, são usualmente de calendários. Uma pessoa exemplifica muito bem essa filosofia: a fotógrafa conhecida como Pops Lopes (relembre as fotos lindas da Pops em nosso primeiro post da série). A pluralidade da trajetória de Pops é singular!

Ela começou “militando” pelas bicicletas. “Eu era da bike” lembra, “Mas hoje atuo mais nos Hortelões Urbanos. Foi assim que conheci o Muda SP, o Bora Plantar… Pude encontrar essas pessoas que acham possível ter sua hortinha na varanda, trocar experiências, em São Paulo, o que era difícil”. Ela não vê conflitos entre seus múltiplos interesses, muito ao contrário. “Comecei em 2011, bem no princípio do grupo PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais). Estava fotografando as plantas daninhas…fotografando a cidade. A fotografia, com a bicicleta, com as hortas, as ervas, com as PANCs , ficou tudo na mesma rede, no mesmo círculo. Foi uma coisa muito importante porque me fez mudar o jeito de morar em São Paulo e pra melhor. Deu uma tranquilidade viver em São Paulo e saber que essas pessoas existem”.

horta do CCSP
Mutirão na Horta do CCSP, pelas lentes de Pops Lopes, hortelã urbana que circula e atua em vários  coletivos da cidade.

Gente que quebra o cinza

Nesses anos todos, Pops tem percebido uma postura diferente das pessoas de fora “desses círculos”. “No começo muitos amigos meus faziam piada quando sabiam que eu estava plantando nas praças, hoje a maioria quer saber como plantar na casa deles, querem saber quando vai ter mutirão… A maioria das pessoas olha de uma forma acolhedora, muitas podem nem participar mas acham simpático”.  Para ela, o impacto que essas pequenas ações têm sobre a cidade é fundamental. “Hoje eu estava na Corujas (Horta das Corujas, na Vila Beatriz) e chegou um senhor com o filho e as netas. Estavam passeando na hortinha e procurando um tomatinho…você vê que não são pessoas desse universo, que ainda têm muito preconceito. Então, fui lá, conversei, expliquei…”. Pops é otimista: “Só que uma visita à hortinha vire uma opção de passeio num sábado à tarde já é alguma coisa. São Paulo não é uma cidade cinza. Tem concreto demais, mas se a gente for invadindo esse espaço, a gente quebra esse cinza…”, conclui.

Para Luiz, o grande trunfo desses grupos são eles mesmos. “Quando estamos em uma expedição da Rios e Ruas, em um mutirão de abertura de nascentes, de revitalização de um espaço público, existem pessoas de todas as idades, origens étnicas, classes sócio econômicas, níveis intelectuais, ideologias políticas, crenças religiosas… Mas ninguém questiona – ou mesmo se interessa – por essas características de cada um. As pessoas se veem como iguais na diversidade, como vizinhos, trabalhando juntos por um objetivo comum e reconhecendo as lideranças que emergem da interação na ação – e que se alternam naturalmente a cada mudança de contexto”.

Pelo sim pelo não, Horizonte Sustentável encerra a série sobre coletivos, mas continua acompanhando a jornada dessas iniciativas. Vida longa aos coletivos!

2014-12 Nascentes do Iquiririm - Rios e Ruas 02
Outra vista da Nascente do Iquiririm

Para além dos riachos …

Aqui duas sugestões de vídeos, ambas de 2014, para saber mais sobre os rios da cidade de São Paulo e para ver e ouvir um pouco dos fundadores da Rios e Ruas, Luiz de Campos e José Bueno.

Documentário Rios Invisíveis  (24′) produzido como parte do curso da Academia Internacional de Cinema. Com poucos recursos financeiros e técnicos, mas muita alma, fala dos rios e da memória.

São Paulo, a cidade dos rios invisíveis, produzido pela Revista Pesquisa FAPESP (9’55”) oferece um excelente histórico sobre os rios da cidade.

Todas as fotos, com exceção da ilustração do poema (Pixabay/CCO Public Domain) e da foto da Horta do CCSP (Pops Lopes) foram cedidas pela iniciativa Rios e Ruas.

Horizonte Sustentável agradece aos entrevistados que participaram nas três matérias desta série e a todos os que colaboram ou colaboraram no movimento dos coletivos ambientais da cidade de São Paulo.