Reportagem
A praça é do povo como o céu é do condor, disse Castro Alves num famoso poema. Muitos anos depois da morte do poeta baiano e mais de mil quilômetros distante da famosa praça que leva seu nome, num estado com menos de 30 anos de existência, um grupo de jovens resolveu tomar a praça e transformar a cidade.
A cidade em questão é Gurupi, no estado do Tocantins, pouco menos de 250 km da capital, Palmas e, segundo o IBGE , com cerca de 83 mil habitantes. A praça, conhecida como a praça do coreto (oficialmente Praça do Centro Cultural Mauro Cunha) foi o local escolhido para a ocupação, mas a ideia nasceu mesmo, como muitas, na mesa de um bar.
Dois anos atrás, um dos fundadores do projeto, o jornalista recém-formado, Philipe Ramos Pedrosa, de 22 anos, conversava com seu professor e amigo, o sociólogo Cláudio Carvalho. Um ano antes, em 2013, inspirado pelas chamadas manifestações de junho, Philipe já havia se juntado a um grupo de amigos para formar o Coletivo Nós. Agora, recebia a sugestão de seu professor para, com seu coletivo, ocupar os espaços urbanos e promover cultura. Experiência semelhante já havia sido testada pelo próprio Cláudio em sua cidadezinha natal, Palmeirópolis, também no Tocantins.
Do bar para a praça
Philipe levou a ideia adiante. “Aqui faltam lazer e entretenimento e muita gente quando perguntada diz que falta cultura também, o que não é verdade”, explica Philipe. “De fato, faltam espaços para a cultura e maior iniciativa dos artistas locais, mas temos cultura, sim, temos dança, capoeira, música…”, ele reforça. “Nosso desejo era dar à cidade uma programação cultural diferente. Fugir do óbvio: carnaval, micaretas, sertanejos…”, lembra Rayna de Oliveira, estudante do último ano de Engenharia Florestal,outra participante do projeto e quem geralmente coordena as oficinas de trabalhos manuais promovidas na praça.
Para o primeiro evento, Philipe conta que pediram a autorização da Secretaria de Cultura, cuja sede fica na própria praça escolhida. Mesmo sendo local onde acontecem eventos rotineiros como ‘pracinha de alimentação’ aos sábados e feira do agricultor, às quintas, o estado físico do espaço é desanimador: “Bancos quebrados, coreto subutilizado, grama alta e mal cuidada…a praça era conhecida como ponto de drogas porque além de tudo é mal iluminada”, reclama Philipe. Apesar de tudo isso, a estréia do Nós na Praça, em março de 2014, não poderia ser melhor, segundo conta Natália Pimenta, membro do grupo desde o início e formada em Artes Cênicas. “Convidamos o grupo de street dance, de Hip Hop, de Rap, bandas de rock e quem soubesse fazer um som. Colegas da faculdade de artes cênicas apresentaram teatro de fantoche e teve oficina de dança. Nesse dia caiu um toró …mas nem isso nos desanimou, o grupo de dança se apresentou mesmo assim, e a energia só aumentou. A idéia deu certo!”
O sucesso da estreia entusiasmou tanto o grupo que eles fizeram três edições semanais consecutivas, mas acabaram tendo de realizar os eventos quinzenalmente e agora o Nós na Praça acontece uma vez ao mês. A logística dos eventos, o custo e a organização de tudo, sem o apoio regular do poder público ou um patrocinador permanente exigia mais e mais dos participantes que, ao princípio, somavam entre 20 e 25 pessoas, e que hoje se resumem à metade disso em número de ativistas regulares. Nada disso , porém, parece afetar a disposição do grupo.
“Com o passar do tempo conseguimos nos organizar bem e dividir funções, mas como somos um projeto independente, tudo fica mais pesado, tudo sai do nosso bolso. A maioria das vezes temos que implorar a liberação de uma caixa de som da secretaria de cultura, por exemplo”, pondera Natália, que confessa já ter feito até gambiarra com um bocal de luz para garantir a iluminação para um show. Segundo conta Philipe, os patrocínios acontecem às vezes (em algumas edições do evento eles não conseguiram nada) e as parcerias com a secretaria da cultura também são esporádicas. “Mas todo apoio que recebemos tem de ser claro e transparente, não fazemos palanque pra ninguém e não deixamos de cobrar responsabilidades do poder público”, ele esclarece. Além da falta de iluminação nas praças, problema que nunca foi resolvido, os membros do grupo reclamam também da falta de limpeza e de coletores de lixo. “Como não dá pra esperar metemos a cara, nós mesmos limpamos, tudo de forma colaborativa”, explica Natália.
A marca da diversidade
À parte todas as dificuldades, nestes dois anos o caráter plural das manifestações culturais promovidas pelo Nós na Praça só se fortaleceu. Uma diversidade que inclui tribos distintas como ciclistas, skatistas, patinadores, slackliners, dançarinos, músicos, e atores. “O Nós na Praça é um festival de múltiplas linguagens que tenta contemplar as mais variadas manifestações artísticas”, resume Philipe.
“Oferecemos diversas oficinas de poesia, de artes (filtro dos sonhos, desenho e lambe lambe), apresentações de dança, batalhas de MCs, esportes radicais , além dos shows musicais. Procuramos alcançar a maior diversidade de seguimentos possíveis”, orgulha-se Rayna. O grupo ainda apoia um festival de cinema e promove sessões de filmes ao longo do ano em diversos locais da cidade.
Embora os maiores frequentadores dos eventos ainda sejam jovens, o grupo já levou sua programação para outras praças, escolas e até mesmo cidades vizinhas. “Quando vamos para os bairros, notamos uma participação maior de crianças”, analisa Philipe. “Queremos que todas as praças se tornem seguras para as famílias “, diz.
Muito além da praça
Se tem se firmado como lugar de música, dança e toda forma de arte, o espaço também é , segundo afirma Natália, utilizado para discussões em torno de temas relacionados à tolerância, respeito, igualdade, direitos humanos e o direito à cidade. “É a oportunidade que a comunidade tem para debater sobre a cidade”, acredita. À lista de temas, Philipe acrescenta ainda diversidade de gênero e feminismo, lembrando que nem todas as pautas são bem recebidas pela comunidade em geral, uma vez que a cidade é bastante conservadora. Dados do IBGE apontam que quase 23 mil habitantes se declaram evangélicos. Para ter uma ideia do peso da agenda religiosa na cidade, um dos três feriados municipais, dia 30 de novembro, é dedicado aos evangélicos.
Mesmo adotando a pluralidade como marca, hoje o grupo opta por ter edições temáticas. No ano passado, por exemplo, discutiu-se o uso da bicicleta na cidade, que é bastante alto, e receberam a visita de Daniel Guth, consultor de mobilidade urbana, importante personagem na implantação das ciclofaixas de lazer na cidade de São Paulo e autor de livros sobre o tema. “Não temos ciclovia e a relação entre motoristas e ciclistas é conflituosa. A gente viu a necessidade de discutir mobilidade urbana e depois da visita do Guth levamos propostas à prefeitura”, informa Philipe. A conversa rendeu tanto que a experiência do Nós na Praça foi parar no Bicicultura, o maior encontro nacional na área de cicloativismo do país, que aconteceu na capital paulista em maio deste ano.
Na bagagem, os representantes do grupo levaram a Sampa também a fanzine Candombá e literatura de cordel, publicados pelo Coletivo Nós. O Cordel da Bicicleta, de autoria do maior cordelista de Gurupi, José Ribamar dos Santos, alia o tema das discussões a uma forma de arte forte na região. E, detalhe, Ribamar vende e divulga sua arte andando de bicicleta pela cidade.
De baixo pra cima
Em 2015, um grupo de urbanistas e arquitetos reunidos em Berlim num seminário chamado How do we create cities together (Como criamos cidades juntos) destacava a importância de transformar as cidades de baixo para cima, ou seja, nenhum projeto deve ser imposto aos habitantes sem discussão e participação de quem vive na cidade. E mais, segundo fala Ute Weiland, coordenadora do evento: “Uma cidade saudável pode abranger e fazer uso produtivo das diferenças de classe, etnia e estilos de vida que contém, enquanto uma cidade doente não consegue fazê-lo; a cidade doente isola e segrega, não criando nenhuma força coletiva a partir da mistura de pessoas diferentes”.
O arquiteto brasileiro Marcos L. Rosa, participante e curador do evento na Alemanha falou sobre o que ele chama de urbanismo ‘feito a mão’, tema do livro que ele co-editou com Ute, Handmade Urbanism , que são iniciativas auto-organizadas. “Estamos falando sobre usos criativos do espaço, e testando o uso coletivo do espaço, com base na produção artística e em programas relacionados à educação, oportunidades de recreação, alternativas de reciclagem, habitação social e assim por diante(…) Eles têm uma abordagem ativa, eles estão trabalhando com suas próprias mãos, fazendo o melhor com os recursos disponíveis, recursos tanto humanos como materiais encontrados no local”. A revista Piseagrama traduziu as discussões que são citadas aqui. Para ler mais, acesse o link deles aqui
Gurupi, cidade jovem e tão distante da velha Berlim, por meio do Nós na Praça ecoa essas ideias e as coloca em prática. “Ocupamos praças que até então eram esquecidas pelo poder publico e até mesmo pela população. Tentamos fazer com que toda a comunidade se envolva , para que troque experiências, conhecimentos, afetos, para que haja uma discussão mais ampla sobre o acesso à cultura e o direto à cidade”, conclui Natália. Talvez o povo gurupiense esteja apenas começando a perceber que não só a praça mas a cidade inteira é sua e que pode fazer dela um lugar melhor pra se viver.
Veja reportagem da TV local sobre o Nós na Praça
As fotos sem referência de crédito foram gentilmente cedidas por Nós na Praça.