Na segunda parte da série sobre Aarhus, falamos de uma experiência urbana bem sucedida que serve de inspiração para redescobrirmos os rios do Brasil.

Especial

O Rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

(Manuel Bandeira)

Rios são poéticos. Defluem, como na lira de Bandeira, ou correm como o fluxo da vida. Rios são parte do imaginário coletivo. Mas, pragmaticamente, eles têm papel fundamental na vida de uma comunidade ou mesmo de uma metrópole. Por isso devem ser resgatados e reintegrados ao desenho de cidades mais humanas e sustentáveis. Foi o que a cidade dinamarquesa,  Aarhus, percebeu.

Se você perdeu o primeiro post da série, olha a chance de ler tudinho aqui

Para quem não conhece, é preciso que se diga que, mesmo menor e sem a fama de Copenhage, Aarhus não decepciona. Cercada de florestas e praias, tem ainda muitos cafés e pubs ao longo do rio, o chamado Vadestedet, totalmente livre de carros e cheio de charme.

Durante todo o verão, quem não tem grana para tomar um drink em uma das mesas de frente para o rio, leva sua bebida e se senta na ‘prainha’, um calçadão com degraus em uma das margens. Quem prefere menos badalação pode continuar caminhando ao lado do rio e encontrar uma parte mais tranquila, cercada de verde. O fato é que o rio virou o centro de um espaço de convivência para jovens ou velhos, famílias ou grupos de estudantes.

Mas nem sempre foi assim…

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Uma tarde de verão no Vadestedet, um espaço de convivência.

 

Um rio de histórias

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Maquete do Museu Moesgård, reproduzindo o rio nos primórdios de Aarhus.

No começo do século XIII, os vikings viram na vila que hoje é Aarhus um lugar excelente para seus negócios. E o rio teve papel crucial na escolha viking. Não é à toa que lhe deram o nome de Aros, a boca do rio. Construíram, então, um porto fluvial, o qual permitia que seus navios chegassem bem perto dos mercados e facilitava o escoamento de produtos por ali também. Com o tempo, o aumento do tamanho das embarcações, e as dificuldades sazonais que alteravam o nível das águas, o rio foi perdendo sua função portuária até ser completamente descartado das atividades comerciais.

Nos anos 30, seguindo a moda urbanística da época, a cidade precisava dar espaço ao desenvolvimento, o que se traduzia em mais espaço aos veículos motorizados. A exemplo do que aconteceu em outras partes do mundo, o rio passou por uma  obra monumental e foi coberto por um boulevard, de fato uma grande avenida.

Cidade para pessoas

Felizmente, nos anos 90,  quando no mundo todo já se falava dos benefícios de um centro de cidade sem acesso a carros (e a exemplo de Copenhagen que, desde os anos 60, já priorizava os espaços para pedestres), Aarhus decidiu resgatar o rio que é parte de sua história. Em duas fases, em 1996 e 1998, parte dos 32 km do rio foi finalmente descoberta e entregue à população e aos turistas. Com toda razão, acabou virando um dos principais cartões postais da cidade.

Parte do rio descoberto para quem prefere ficar longe do agito. Fotos: Selma Vital

A história feliz não acaba assim, claro. Assim como o rio corre, a cidade e o mundo passam por várias transformações e  uma administração municipal inteligente deve estar atenta a elas. Em 2007, em parte como efeito da mudança climática,  o rio chegou a meros 10 cm de causar uma enchente. Era urgente, então, pensar em formas de prevenir o pior. Foi hora de investir em mais uma grande obra, dessa vez criando eclusas com capacidade de, em caso de necessidade, bombear 18 m3 de água por segundo (ou 63.000 m3 por hora) diretamente para a baía. O sistema é invisível em situações normais e com capacidade de se adaptar a vários cenários em caso de cheia. É o primeiro a ser usado no país.

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A happy hour é mais feliz tendo o rio como cenário.

Rios descobertos

No Brasil, além do desenvolvimentismo desvairado que dominou as grandes cidades nos anos 70 e 80 (veja-se no caso de São Paulo o caso do monstruoso Minhocão), os rios foram também pouco a pouco sendo cobertos. São Paulo novamente é excelente caso de estudo neste sentido. Com 186 bacias hidrográficas catalogadas pela prefeitura, calcula-se que tenha pelo menos 200 cursos de água , a maioria enterrada sob grandes avenidas ou correndo nos subterrâneos da cidade.

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Maquete que é parte integrante da exposição interativa Rios Des.Cobertos, que fica no Sesc Vila Mariana até 18 de dezembro.

Na capital paulistana, rio para muita gente sempre foi sinônimo de problema: a sujeira, que teve início justamente com a industrialização, quando as fábricas utilizavam suas águas e devolviam lixo e detritos químicos, matando-os impunemente e com as bênçãos do poder público. Já  outro pesadelo recorrente sempre foram as enchentes, problema que a desastrada política de sufocá-los só fez aumentar, provando que uma situação ruim pode sempre ser piorada sob a falsa ideia de progresso.

Em São Paulo, como em Aarhus, os rios têm uma história que se confunde com a cidade. Só para dar um exemplo, a pauliceia teve até mesmo um porto fluvial, no Rio Tamanduateí, do qual hoje só resta um nome de rua: a Ladeira Porto Geral.

Para quem tem interesse em saber mais sobre os rios paulistanos que correm sob seus pés e como fazer algo para salvar todos os rios, cobertos ou não, é importante ver a instalação Rios Des.Cobertos que fica aberta à visitação no SESC Vila Mariana  até 18 de dezembro. Trata-se de um projeto conjunto entre o Estúdio Laborg e a Iniciativa Rios & Ruas que de forma super interativa leva as pessoas a aprenderem sobre a causa. E que os rios voltem a refletir as estrelas!

Se há um rio na sua cidade ou região que vale a pena ser salvo, conte pra gente nos comentários.

Fotos: VisitAarhus/ Divulgação

Horizonte Sustentável já falou de rios e nascentes , confira: Os coletivos e as cidades (3)